quinta-feira, 8 de março de 2018

OSWALDO GUSMÃO E NINA WIRTI - O VOO DA MOSCA

Os cantores OSWALDO GUSMÃO e NINA WIRTI homenageiam Jacob do Bandolim em seu centenário com a versão de um clássico do instrumentista. O VOO DA MOSCA recebeu letra de Oswaldo, num quebra-cabeça poético capaz de dar vida cantada ao intrincado motoperpétuo de Jacob.

O resultado pode ser conferido no links abaixo:

Apple Music - https://goo.gl/PSg4ct

Letrar choros é tarefa árdua. Poucos são aqueles que se atrevem a sobrepor versos em melodias consagradas do gênero, sob o risco de descaracterizar um clássico ou, no mínimo, angariar a antipatia dos puristas. Na vasta literatura da nossa canção popular, nomes como Vinicius de Moraes e Herminio Bello de Carvalho estão entre os raros poetas que tiveram peito e sensibilidade de encarar semelhante empreitada.

O violonista LUIS FILIPE LIMA, que incentivou Oswaldo a dar asas à mosca de Jacob, fornece sua versão dos fatos:

“Há alguns anos encasquetei que ia gravar um disco cantando. O primeiro tema que me veio à cabeça foi "O voo da mosca", a famosa valsa de Jacob, um moto-perpétuo escrito para o bandolim, portanto sem espaço nenhum para a respiração, ainda por cima com arpejos e intervalos cabeludérrimos e uma extensão melódica sobre-humana, ideal para o meu propósito. Mas, claro, a graça seria gravar a valsa com alguma letra. Pois o primeiro maluco que me veio à cabeça capaz de letrar o "Voo" não foi outro senão Oswaldo. Liguei pra ele na hora e fiz a proposta indecorosa. Ele riu, riu e engasgou, porque sabia que eu estava falando sério, mas topou na hora. Coisa de um mês depois recebi dele um e-mail com a letra e uma gravação caseira dele cantando a valsa. Caí pra trás. O que era pra ser uma brincadeira, ainda que sofisticada, virou assunto mais que sério. Oswaldo deitou e rolou, desenhou o voo da mosca na primeira pessoa, com emoção, humor, virtuosismo poético e riqueza imensa de ideias. o resultado está aí, o registro de uma das letras mais incríveis que conheço - e incrível é mesmo o melhor adjetivo que encontro pra falar do voo de Oswaldo” – conta Luís Filipe.

Oswaldo Gusmão descende de seleta linhagem de poetas cronistas da canção brasileira. Seu primeiro disco, “Olha Zé” (1998), produzido por Pedro Luís, ganhou o Prêmio Sharp (atual Prêmio da Música Brasileira) como melhor álbum de samba. Em seguida vieram “As Árvores” (2005) e “Serenata” (2007), todos com sucesso absoluto de crítica. Em 2016, lançou a coletânea “Sambas de Amor e Humor”.
O VOO DA MOSCA
(JACOB DO BANDOLIM - OSWALDO GUSMÃO)

Meu vôo é rasteiro Pouso nos canteiros E nos meios-fios Dou rasante, paro, volto e desvio Farejando tudo que se deteriora Resto de comida que jogaram fora Dentro de sacola de supermercado Gosto de papel de picolé melado Casca de laranja, requeijão mofado Bicho atropelado Eu sobrevôo o lixo Espalhado perto do canal do mangue Busco nas favelas as poças de sangue Me atrai o líquido fermentadíssimo Que vaza do caminhão da Comlurb e os Canais a céu aberto nos subúrbios Pelo asfalto em final de feira Passo com as minhas companheiras Procurando o que sobrou Também eu aprecio Alimentos caros que vocês humanos Deixam protegidos debaixo de panos Doce de abóbora e ambrosia Aterrizo em balcão de padaria E se um grã-fino organiza festa Entro de penetra por alguma fresta Pra pousar na sopa sobre a baixela Que o mordomo traz E sei perfeitamente Onde a preguiça põe sua semente Pela pasmaceira de uma tarde quente De depois do almoço nos interiores Quando vejo um caboclo adormecido Rodopio ao redor do seu ouvido Para avisá-lo com o meu zumbido Que já terminaram a sua moleza e a sua paz

Eu vivo onde o mato Verde e ameno Já ficou escasso Para dar espaço A algum terreno Onde os indivíduos Jogam os resíduos Que não servem mais E já não se escuta a canção serena Vinda das cigarras e dos sabiás Agora só os ratos e alguns mosquitos Rondam os detritos Dentro dos latões Ali onde as correntes Dos regatos límpidos e transparentes Recebendo água suja das moradas Adquirem cores E aroma de poluição fatal Pois onde acaba a selva Há uma clareira Cheia de sujeira E isso é sinal Que nós agora estamos nos aproximando De alguma câmara municipal

Meu vôo é rasteiro Pouso nos canteiros E nos meios-fios Dou rasante, paro, volto e desvio Farejando tudo que se deteriora Resto de comida que jogaram fora Dentro de sacola de supermercado Gosto de papel de picolé melado Casca de laranja, requeijão mofado Bicho atropelado Eu sobrevôo o lixo Espalhado perto do canal do mangue Busco nas favelas as poças de sangue Me atrai o líquido fermentadíssimo Que vaza do caminhão da Comlurb e os Canais a céu aberto nos subúrbios Pelo asfalto em final de feira Passo com as minhas companheiras Procurando o que sobrou

Eu não conheço o vôo alto dos condores Nem o céu tranqüilo dos aviadores Nada sei do azul com pôr-do-sol dourado Nunca fui no píncaro mais elevado Não almejo o firmamento das quimeras No ar rarefeito das estratosferas Minha liberdade Mora onde o sonho da felicidade Derramou no chão Jamais irei subindo até os confins Pra conhecer o Éden e os seus jardins Onde ressoam cítaras de querubins E nem me interessa o paraíso etéreo Pois a morte para mim não tem mistério Já conheço tudo que é cemitério Vejo além de tempo e espaço Pois conheço passo-a-passo A decomposição

Direção musical: Rafael Vernet. Engenheiro de som: João Ferraz. Gravado no Estúdio Lontra. Filmado por Marcelo Fedrá e Ágata Neves. Editado por Ágata Neves

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